02 janeiro, 2007

Tentando balançar.

Estava tão quente que teve vontade de oferecer às pessoas que via passar do lado de lá do vidro, os queixos enfiados nas golas, o olhar preso ao chão, molhado pela chuva fria. Saboreava-o entre as mãos, deliciada, sem se lembrar de quando passou a preferir aquele café-chá em relação ao café-creme-e-curto.

Depressa percebeu que não é preciso encontrar razões para tudo. Sabia-se ali, uma pessoa apenas no meio de milhares delas, num café no centro de uma metrópole da Europa Central. Há muito tempo que não ouvia a sua língua em redor. Entretinha-se a tentar decifrar a nacionalidade dos que com ela se cruzavam.

Pousou a chávena e voltou a pegar na caneta. Tem nela gravado o mesmo nome da Universidade que escreveu no dia das candidaturas. Nessa altura nunca se teria imaginado ali, no último dia desse mesmo ano, naquele ponto tão longínquo de tudo o que receou deixar.

Virou a página do caderno – por orgulho de ter ultrapassado essa fase ou por medo de relembrar essa época, não sabe ao certo. Mas também tinha aprendido a desligar-se das reflexões em rede, essas que vão dar aleatoriamente a apenas uma de várias conclusões possíveis. Precisava de férias do passado. Agora só lhe apetecia apanhar aviões para o futuro, esse futuro que já vivia ali sem saber, depois de, caneta pendulando entre os dedos, o ter imaginado nos cafés tradicionais daquele país que tanto criticava - e cuja luz hoje lhe trazia lágrimas de saudade frequentes. Então aproximou a caneta da folha, lembrou-se da mágica festa que teria lugar nessa noite em Times Square e, imaginando, escreveu: “Nova Iorque”.

Lá fora os gorros e cachecóis, sob as iluminações de Natal nos postes e nas árvores nuas da cidade, transportavam-na mentalmente para a Big Apple, ou groβer Apfel – não sabia agora qual o nome indicado. Sentia-se uma gotícula no meio de uma série de ruas perpendiculares – e sorriu. Talvez a cidade que nunca dorme tivesse adoptado uma filha chamada Berlin.

Já não tinha a mesma perícia para preparar o futuro e criar expectativas. Aos poucos via-se a pensar apenas em cada dia, sem por isso esquecer tudo o que ficou para trás que a trouxe até ali. Àquele café.

Sabia que não tinham sido tempos fáceis. Ao listar mentalmente tudo o que a tinha preocupado nesse ano, sacudiu a cabeça e voltou a concentrar-se no sabor do café. Ainda não conseguia recordar tudo aquilo, esquecer, acreditar sequer. Tinha simplesmente continuado, com a certeza de que tudo tinha dependido dela. Estava cada vez mais convicta de que só se apercebeu de qualquer coisa – mas nunca tudo – quando aterrou naquela noite, naquele aeroporto loiro, alcatifado, mudo e totalmente baço.

Fechou o caderno. Desta vez não queria relembrar nem planear. Engoliu o último resto de café, levantou-se, vestiu o casaco, enrolou o cachecol ao pescoço, calçou as luvas e saiu para a rua. Depois de tentar identificar as ruas para saber que percurso tomaria para a chegada do novo ano, enfiou o chapéu na cabeça, aconchegou o queixo no cachecol e, olhos postos no chão, seguiu em frente.


4 comentários:

mj disse...

Mudaste. Já não és a pessoa que vi a última vez num aeroporto, a despedida triste - não conheço aliás despedidas felizes -, com as lágrimas do medo do desconhecido, da saudade antecipada, da falta que íamos começar a sentir dali a instantes. 16: foi o dia mais triste do meu setembro, confesso-te. E agora nem percebo porquê!Aquela pessoa que quem não conhecesse julgaria frágil,partia, afinal confiante, afinal corajosa, afinal decidida a aceitar todas as mudanças, até o sabor do café que bebes no início de mais um dia de conquistas nesse país frio.
E já não és o que eras. Tornaste-te numa pessoa segura, (sempre foste, aliás, mas só agora o sabes!)dona do seu destino, disposta a mudar o rumo da sua vida, e a deixar de planear porque só te sobra tempo para viver...
Estou desejando conviver com esta nova Débora. Que chegue Fevereiro, que regresses depressa (não conheço regressos tristes!) a este mundinho que continua igual, pronto para te receber diferente, e muito melhor!:)
adoro-te!Até sempre, agora até Fevereiro!

ARN disse...

Sem planear nada? Sem tentar encontrar explicações? Que bom amiga, agora és uma mulher ainda maior, parece que sabes a altura certa para tudo!

Caramela disse...

so consigo sorrir ao ler isto... sim concordo, mudaste, para melhor, sem medos. gosto de ti assim. :)

p.s. desculpa, e verdade, tive mesmo na alemanha, mas tão pouco que nao me lembrei de dizer nada...

Anónimo disse...

ao ler este balance que foi criado perto de mim,so tive a prova que a menina nao mais e menina,nunca pensando que aquele vultozinho tao fragil que vi desaparecer por tras das paredes do aeroporto tao depressa as suas asinhas a fizessem crescer tao depressa.so posso ficar contente pq se lhe dei asas foi para voar so espero que sempre tao alto como ate agora!PARABENS... tambem a mim ,pela filha que tenho!